O uso medicinal da maconha tem gerado muita esperança, mas também muitas incertezas e controvérsias. Boa parte do público leigo vê na planta a cura para muitos males, a maioria não sabe a diferença entre os seus diferentes derivados— naturais e sintéticos, artesanais e industrializados. Até mesmo médicos se confundem na trama complexa entre evidências científicas, manipulação de marketing, lobbies políticos e legislação associados à milenar cannabis sativa.
De fato, as diferentes espécies da erva cannabis já eram conhecidas e usadas pelos antigos assírios, chineses e indianos, tanto para fins terapêuticos, quanto recreativos e ritualísticos, devido aos seus efeitos sobre a consciência. No Ocidente, ela alcança reconhecimento ao final do século XIX e começa a ser prescrita no tratamento de espasmos, dores e convulsões. Entretanto, aos poucos, sua indicação médica foi perdendo espaço para outras drogas e o uso recreativo começou a ser associado a problemas, resultando em sua retirada da lista dos medicamentos e finalmente em sua proibição.
Nos anos 60 são isoladas as duas principais substâncias ativas da planta— o Δ-9-tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (DBD), as quais fazem parte de um grupo químico denominado fitocanabinóides, presentes na maconha sob a forma de mais de 70 moléculas diferentes.
Nos anos 90, é descoberto que o cérebro de mamíferos, aves, répteis e até mesmo peixes produz moléculas semelhantes— os endocanabinoides—dentre as quais a anandamida e o 2-aracdonoilglicerol são os mais bem caracterizados— e que diferentes células do organismo desses animais expressam receptores nos quais as mesmas se encaixam, ficando assim estabelecido o sistema canabinoide que opera através de neurotransmissão retrógrada, modulando a atividade e a excitabilidade dos outros neurônios. São descritos dois tipos de receptores canabinoides, denominados CB1 e CB2. Enquanto que o primeiro é amplamente expressado no cérebro— inclusive em áreas associadas ao processamento emocional, cognição, sono, dor e apetite—, o segundo está presente em células do sistema imunológico.
As pesquisas voltadas para a compreensão desses novos neurotransmissores impulsionaram a retomada do interesse científico pela maconha e seus mecanismos de ação. Os seus conhecidos efeitos psicodélicos são atribuídos à ação agonista do Δ-9-THC sobre os receptores CB1. Essa ação não mimetiza os efeitos fisiológicos dos endocanabinóides e, dependendo da dose consumida e da vulnerabilidade individual, podem ocorrer sonolência, euforia, ansiedade, medo e até fenômenos psicóticos como alterações de percepção, desorientação, alucinações e delírios. Além disso, o Δ-9-THC estimula a liberação de dopamina em circuitos associados à motivação e ao aprendizado associativo, propiciando o surgimento da dependência, ou adição. Já o CBD age de maneira mais complexa sobre o sistema canabinoide e tem mostrado efeito de redução da dor neuropática, da ansiedade e dos sintomas positivos da esquizofrenia, tendo também efeito anticonvulsivante, neuroprotetor, anti-inflamatório, antioxidante e até mesmo pró-cognitivo. Trata-se aqui, porém, de resultados de estudos em animais, ou de estudos preliminares em humanos. Foram testados os efeitos isolados das duas substâncias, assim como de combinações de ambas em diferentes proporções. Assim surgem extratos puros de CBD para o tratamento da epilepsia refratária, extratos de THC e CBD na proporção 1:1 para o tratamento da espasticidade e da dor neuropática na esclerose múltipla, mas também o THC sintético puro, dentre outros. Todavia, ainda há muitas lacunas de conhecimento. Por exemplo, não se sabe ainda ao certo qual a dosagem mais eficaz para as diferentes doenças, qual a melhor proporção entre as concentrações de THC e CBD, quais os riscos do uso de canabinoides em longo prazo, etc.
Enquanto isso, explode o comércio de formas potentes de maconha (skunk)— resultantes do cruzamento de diferentes espécies de cannabis— assim como a maconha sintética (spice), todas com altíssimas concentrações do princípio alucinógeno e causador de adição— THC. As consequências, ainda subestimadas pela população geral, são aumento de diversos problemas psiquiátricos, como dependentes químicos, pessoas com esquizofrenia, com prejuízo cognitivo, etc.
Antes de ter uma opinião formada a favor, ou contra o uso medicinal da maconha (ou de seus princípios ativos), ou sua legalização como droga recreativa, é importante conhecer e refletir sobre os dados científicos, a qualidade dos diferentes produtos no mercado, os benefícios e os riscos imediatos e de longo prazo.